20.2.11

O português que entrevistou Jünger

por Eurico de Barros - DN 08 Janeiro 2011

Num país onde qualquer obscuro jogador de futebol que vai dar uns chutos para um clube romeno ou eslovaco, ou qualquer treinador manhoso que vai orientar a selecção do Turcomenistão ou do Suriname, é transformado em figura nacionalmente relevante e merecedora da mais enlevada atenção dos media, passam muitas vezes despercebidas as pessoas realmente excepcionais, que fizeram coisas únicas.
Uma delas foi Roberto de Moraes, jornalista, tradutor e especialista em história militar e da Europa, falecido em Lisboa, a 17 de Dezembro, aos 71 anos. Trabalhou em O Século, Vida Mundial e A Nação, bem como na RTP, tendo deixado colaboração espalhada por vários outros títulos nacionais e estrangeiros, e publicações militares.
Roberto de Moraes ficará para a história do jornalismo nacional, por ter sido o único português a ter entrevistado o escritor Ernst Jünger, por várias vezes, beneficiando da sua profunda ligação à cultura germânica e do seu conhecimento da literatura europeia,em especial a alemã, a francesa e a inglesa.
A primeira dessas longas entrevistas com o autor de Sobre as Falésias de Mármore e A Guerra como Experiên- cia Interior, deu-se a 27 de Maio de 1973, na casa de Jünger em Wilflingen, na Suábia, e foi publicada, sob o título Ernst Jünger: O Mago da Floresta Negra, na Vida Mundial, em 1976, com destaque de capa.
É um documento único, que fez com que Roberto de Moraes seja o único português mencionado por aquele gigante das letras no seu diário. Na hora da sua morte, aqui fica a homenagem, a evocação e o orgulho de o ter conhecido e de lhe ter chamado amigo.

Ernst Jünger: O Mago da Floresta Negra
Roberto de Moraes
publicado na revista “Vida Mundial” n.º 1897, de 22/7/1976

Conversei algum tempo com Ernst Jünger, considerado muitas vezes o maior escritor vivo de língua alemã, em 27 de Maio de 1973.Tendo-lhe telefonado a solicitar a entrevista, em princípio de muito difícil obtenção, e encontrando-me a grande distância, a resposta, após ligeira hesitação, veio com rigorosa precisão militar, superior às contingências: “Esteja aqui amanhã, às cinco da tarde.”



Na Suábia, em plena Floresta Negra, no centro de Wilflingen, pequena povoação com cerca de quatrocentos habitantes, ergue-se, em frente do castelo dos condes de Stauffenberg, a antiga casa do Intendente das Florestas, datando do princípio do século XVIII, em que vive Jünger, desde 1950.

Àquela família senhorial da velha nobreza alemã pertencia o coronel conde de Stauffenberg, executado em 1944 pela sua participação no atentado contra Adolfo Hitler. Foi ele que colocou, sob a mesa da conferência, a pasta que transportava a bomba, cuja explosão viria apenas a ferir o chefe do III Reich.

Referindo-se à casa em que vive com a sua segunda mulher, Liselotte, bibliotecária e historiadora, rodeado das suas colecções de plantas e insectos, pois é um entomologista apaixonado, de sete bibliotecas filosóficas, científicas e literárias e de um mundo de fotografias e recordações de um passado rico e muito pessoal, que se mantém presente, Ernst Jünger disse-me na altura, que ela completaria dois séculos e meio em 1974, contando nessa ocasião, que quase coincide com os seus oitenta anos, reunir alguns amigos: o irmão Friedrich Georg, também escritor, Alfred Andersch, François Bondy, Marcel Jouhandeau, entre outros.

É visível que o escritor se sente perfeitamente à vontade neste modesto e retirado burgo, que constitui o seu quadro natural, “onde ainda encontra espaço”, como me fez notar ao receber-me, jantando no dia da semana tradicionalmente reservado às limpezas da casa, em ameno convívio, na estalagem da terra.

Este isolamento, que evoca o “Rebelde” com que abre a trilogia “Àcerca do Homem e do Tempo”, lembra também o costume germânico referido por Jünger em Der Waldgang” (“O Caminho da Floresta”): no tempo das sagas islandesas, concedia-se ao homem condenado e banido a liberdade de ir para a floresta e aí levar uma vida solitária, mas independente.

Na época dos totalitarismos de Estado e de Sociedade, de grosseira tirania da técnica e da mecanização, com o seu fatal determinismo materialista, não será o único modo de viver, para um homem como Jünger? Última forma de defender a liberdade espiritual e com ela, a própria possibilidade de criação num tempo de conflito irremediável entre o biológico e o sociológico, entre a cultura e a civilização.

Ou traduzirá simplesmente aquela atitude uma constante posição de marginal e um gosto de distante independência e serena meditação, reflectidos profundamente na sua obra e na sua vida?

De qualquer modo, aludindo indirectamente a estes aspectos, durante a nossa conversa, em que logo de início explicou não suportar magnetofones, testemunhas cínicas e indiscretas, Jünger acrescentaria: “As elites estão mal vistas. Sou um homem solitário. Antigamente, havia os claustros. A salvação da alma é importante. Não se pode ser elitista, quando não há elites. É ridículo. Ser aristocrata hoje é bastante difícil... quase ridículo.”

De estatura média para um alemão, Ernst Jünger transmite uma certa ilusão inicial de fragilidade que cedo se desvanece, dando lugar a uma impressão duradoira de grande robustez.

Quando me recebeu, vestia um fato castanho de bombazina, a que uma camisa de gola alta, cor de vinho, dava um toque discreto de esteticismo.

Mantém sempre um grande aprumo, com gestos decididos e movendo-se com extrema agilidade. Passa de uma imobilidade atenta de grande felino para, de súbito, procurando um livro ou um classificador de insectos, galgar, com uma vivacidade de adolescente, os muitos degraus a que a mansão do século XVIII dá a inclinação de escadas de bordo.

Por vezes da a ideia de estar ao mesmo tempo, interessado e distraído, simultaneamente presente e ausente, como se os sinais e símbolos da usual conversa, em parte literária e filosófica, histórica ou factual, fossem também cifras de uma realidade de outra ordem.

O rosto, triangular, de feições regulares, e com as zonas do pensamento e da acção ligeiramente dominantes sobre a da vontade, sugere, de princípio, um certo ar volteriano, que se desfaz à medida que nos vamos habituando à enorme intensidade luminosa do olhar, à decisão da expressão e à doçura, por vezes quase inocente, do sorriso. A pele curtida apresenta um marcado contraste com o branco puro do cabelo, penteado à romana.

O conjunto deixa uma impressão de energia vital, ora contida, ora por instantes desfechada em sacões. A austeridade marmórea do antigo oficial germânico, sempre presente, é temperada pelo sorriso e pelo olhar. Também a voz se integra nesta imagem coerente de todo, indo do emaciado tactear em terreno desconhecido até à expressão claramente ordenada e bem articulada ao gosto prussiano.

Nascido em 29 de Março de 1895, nos terraços suspensos da romântica, bucólica e universitária Heidelberg, de pai saxão e mão francónia, no meio abastado e culto da classe média de antes de 1914, cedo aprendeu, naquele ambiente literal e humanista, o gosto do rigor científico, a curiosidade intelectual e o sentido do dever e da disciplina.

O sentimento da família, o seu significado de elo de ligação entre gerações, a ternura pelo pai, o carinho por sua primeira mulher, Perpétua, expressivamente, na cifra do “Diário”, o amor do filho Ernst, voluntário caído aos dezoito anos em Carrara, constituem bases de sensibilidade e de permanente fidelidade do seu sentido de superior harmonia da vida e do Universo.

Seria precisamente ao estrato social em que nasceu, que os hierarcas do II Reich foram buscar os elementos que dariam seiva nova, completando os homens da velha aristocracia fredericiana, síntese que preteriu a Inglaterra em relação à jovem Alemanha, que chamaria a si os resultados dominantes da segunda revolução industrial, com todas as inerentes consequências.

Ernst Jünger cedo passaria pelo “Movimento da Mocidade”, abandonando a dada altura a segurança da família e da escola, perseguindo o sonho romântico e a ilusão exótica do velho continente africano, um panorama à medida das suas ambições de juventude.

Depois de uma breve fuga para a Legião Estrangeira – que descreve nos “Jogos Africanos” e na “Autobiografia” – onde se alistou, declarando mais dois anos para perfazer os dezoito da idade mínima regulamentar, após o prestígio do quépi branco e a sedução de envergar a camisa com as pregas iniciáticas, Jünger, em resultado das diligências de seu pai junto da Embaixada de França, regressou à Alemanha, onde reencontraria o estudo e as aventuras de uma adolescência selvagem.

A Chamada da Raça


Soldado, para além de aventureiro e guerreiro, voluntário, responde prontamente, com o fogo do entusiasmo, à chamada da raça, em Agosto de 14. Encontraria, assim, o lugar geométrico e temporal que lhe competia, vivendo então autenticamente um traço vocacional profundo que o marcaria para sempre.

Durante o primeiro ano, soldado, mais tarde, depois de provas prestadas de coragem física, capacidade intelectual e firmeza de carácter, oficial, após ter concluído o curso, em que apenas se inscreveu por insistência do pai, pois de início lhe parecia preferível bater-se, sob o uniforme de simples fuzileiro, responsável unicamente por si próprio.

Sempre presente na frente de batalha, comandou, desde meados da guerra tal como Rommel, uma dessas companhias especiais, que faziam incursões atrás das linhas inimigas, e cujas posições habituais se encontravam entre as frentes, na chamada “terra de ninguém”.

Nacionalista sempre fora e sempre conservará o gosto da coragem e o culto das armas. Com o desfecho da primeira guerra mundial, assiste à derrota militar da Alemanha e à transformação do Império na democrática República de Weimar, governada por plebeus e burgueses, pacifistas e socialistas.

Mas era também o tempo “revolto”, em que os Corpos Francos, que pareciam brotar espontaneamente da própria alma alemã, se encaminhavam como torrente para Leste, cobrindo-se de glória nas terras do Báltico e nas fronteiras com a Pólonia, da luta de classes revolucionária e da dura pacificação interior, levada a cabo pelo social-democrata Noske e pela pequena Reichwehr.

Como Ernst von Salomon, o autor de “Os Cadetes” e de “Os Reprovados”, Ernst Niekisch ou Moeller van der Bruck participa na agitada vida política da época em que se defrontavam as esquerdas marxistas e as direitas socialistas e nacionais de então, igualmente empenhadas em transformações radicais.

No plano científico, em Goettingen, trabalhavam nessa altura Heisenberg, Planck, Pauli, Jordan; no terreno artístico e literário, brilhavam Hauptmann e Thomas Mann e lançavam as últimas chamas do seu talento Rilke, Kafka, Musil e Broch. Triunfava a pintura expressionista e o cinema do mesmo nome; a nova linha arquitectónica da Bauhaus e a música de Richard Strauss; o pensamento de Spengler e de Keyserling, de Husserl e de Heidegger.

Como testemunho da experiência da frente, Jünger escreveu, isolado e cerca de dez anos antes de muitas outras obras – que, se tinham por tema o mesmo assunto, nem sempre vinham assinadas por homens da mesma família espiritual – “In Stahlgewittern” (“Tempestades de Aço”), impressionante descrição dos combates daquela grande guerra que, começando europeia, terminaria mundial, das “materialschlachten” (“batalhas de material”), em que a vitória cabe aos mais numerosos e melhor armados e às indústrias da retaguarda, com sede além Atlântico.

Ao contrário de tantos outros que se lhe seguiram, Jünger não retira, porém, da sua experiência, a conclusão amarga da inutilidade do heroísmo pessoal na guerra moderna e escreveu: “Temos batalhado na lama e no sangue, mas o nosso rosto sempre se voltou para as coisas de alta e suprema valia e nenhum dos que perdemos durante os combates caiu em vão.” Ao seu patriotismo, sem ódio, junta-se o culto dos heróis: “Solitários, mantinham-se nas tempestades dos combates, quando a morte, como um cavaleiro de púrpura, lançando chamas, galopava através das brumas (...). Eles eram os vencedores do medo.”

O seu instinto de homem de guerra permanece intacto. Quando, passeando no jardim, ao fazer-me as honras do proprietário, se falou das guerrilhas em Angola, manifesta o seu interesse pelas condições do combate no terreno e pela natureza das operações militares e, depois do regresso a casa, mostra-me, sorrindo com extrema vivacidade, o seu capacete com dois buracos de bala, pondo-o na cabeça, enquanto uma chama fugaz de juvenil alegria lhe brinca nos olhos.

A propósito de Angola, fala-me de insectos que descobriu naquele território em 1968, de uma nova espécie – a “Cicindela Juengeri”, vulgo “Juengerela”, explicação que acompanhou de um sorriso – descrita em 1972 pelo professor Mandl. Segundo me disse então, gostaria de lá voltar, fazendo mesmo o projecto de uma nova viagem por mar...

Acerca da entomologia, cuja paixão descreve em “Annaeterungen” (“Caças Subtis”), sublinhando a certeza de inacabado que inevitavelmente acompanha o coleccionador de insectos em face do número incalculável de espécies, e que tão bem se conjuga com o sentido de Jünger de intemporalidade, de dimensão histórica e do efémero do humano, há um traço no seu “Diário de Guerra e de Ocupação – 1939/1948” que revela plenamente o naturalista e a sua intuição: Quanto à conspiração de 1944, o resultado nunca lhe pareceu duvidoso, bastando, segundo ele, comparar as mandíbulas poderosas dos SS com o facies afinado dos oficiais rebeldes, representantes de uma aristocracia fatigada.

É também o naturalista que, com o seu olhar agudo e a sua terminologia característica, tantas vezes presentes na obra, se manifesta, embora desta vez num sentido mais global, quando escreve, num ensaio sobre o pintor e gravador simbolista Alfred Kubin, “Die Staubdaemonen” (“Os Demónios da Poeira”), que se deve discernir, “no naufrágio do mundo burguês, que nos arrasta a todos, activos ou passivos, os sintomas da decomposição orgânica, mais subtil e penetrante que os factos técnicos ou políticos de que está suficientemente afectado”. Aliás Jünger sempre se mostrou sensível ao espectáculo da decadência, decomposição e decrepitude dos finais de época; na parede do seu gabinete de trabalho, Bruegel está representado por uma reprodução da “Torre de Babel”, vizinha de um desenho à pena que representa “A Última Noite de Atlantis”.

E igualmente são imagens do mundo da ciência de que se serve, neste curto comentário ao drama de uma noite de bombardeamento em fins de 44, assinalado no “Diário”, em que o desprezo encontra a perspectiva exacta: “Parece que fomos ontem sobrevoados por mil e seiscentos aparelhos. Com suas espirais e rastos brancos assemelhavam-se a enxames de micróbios formigando numa imensa gota de água azul.” Passa, assim, com simplicidade, da habitual frieza factual para uma poesia cósmica, como se através desta transmutação houvesse já a preocupação de “fixar” alquimicamente os portadores de morte do macrocosmos no infinitamente pequeno, aprisionando-a...

Ainda sobre assuntos militares e a respeito do “Innere Fuehrung” (em cuja academia em Koblenz, eu estivera há dias), o “princípio da consciência”, base da “disciplina consentida” da Bundeswehr, o actual exército da Alemanha Federal, e que tantas discussões escaldantes tem provocado entre os especialistas, Jünger, curiosamente, atendendo à sua tradição, não me pareceu atribuir-lhe particular significado. Com extremo realismo e lucidez, limitou-se a pôr o problema do valor da antiga regra de rigorosa obediência no quadro presente de uma guerra nuclear, que se procura evitar por qualquer preço. Fazendo um paralelo com o passado, anterior a 1945, recordou com um sorriso que, nesse tempo, eram os políticos que tinham de refrear os entusiasmos excessivos dos povos e os ardores guerreiros.

O que cada um faz do seu niilismo

Em 1932, Ernst Jünger publicou o ensaio “Der Arbeiter” (“O Trabalhador”), talvez a mais empenhada ideologicamente de todas as suas obras, expressão de uma muito forte vontade de poder, em que exige a transformação da nação inteira, de acordo com os novos imperativos da técnica bélica, a militarização total da economia e da indústria, a conversão do seu povo num exército de operários de uniforme, comandados por um corpo ou escol de engenheiros fardados. Mas, não obstante, para ele, a militarização excluía necessariamente a massificação. Eram mesmo coisas opostas.

É que Jünger é aristocrata por sensibilidade e por temperamento e se os seus ideais de mobilização total quase conhecem realização efectiva e completa no decurso da segunda guerra mundial, com o Nacional-Socialismo, a verdade é que nunca aderiu ao movimento ao qual levara tantos adeptos.

De resto, abordando durante a conversa o assunto, já noutro plano e perspectiva, numa linguagem iniciática e quase cifrada, Jünger dir-me-ia: “Não se encontra Deus, mas descobre-se o Céu.”

O trabalhador é uma força espiritual que se irá manifestar em tipos novos e num mundo novo. Não como classe, mas sim como uma nova força histórica que destruirá as velhas castas. A técnica é a veste do trabalhador.

Desenha-se actualmente uma evolução que levará muito tempo a atingir o seu estádio final. A astrologia já o anunciou, da mesma forma que as velhas profecias do início da Cristandade. Caminhamos para uma nova espiritualidade, coincidente com a era do Aquário. O importante é o que cada um faz do seu niilismo...

Théophile Gautier escreveu que a barbárie vale mais do que a vulgaridade. Hoje, as pessoas que pensam dialecticamente vêem, regra geral, com um único olho. A humanidade zarolha é mais repugnante do que a barbárie.

A sua atitude perante o Nacional-Socialismo é explicável, quer por uma nobreza de sinal aristocrático, que rejeita com firmeza qualquer tipo de demagogia, quer por um humanismo inato, uma qualidade espiritual e uma escala de valores que condenavam, irremediavelmente, um niilismo huamano e o drama bestial dos campos de concentração.

No seu romance “Auf den Marmorklippen” (“Sobre as Falésias de Mármore”), cujas provas reviu em Setembro de 39, de novo sob uniforme, já com os galões de capitão, traduzindo a promoção que lhe fora comunicada por telegrama pelo próprio comandante em chefe do Exército, von Brauchitsch, sinal de rara distinção, logo houve quem visse – sobretudo em certos círculos do ministério de Goebbels – uma denúncia do totalitarismo.

No entanto, apesar da insistência de muitos, já depois de terminada a guerra e não obstante a simpatia fácil e as vantagens que daí lhe adviriam junto das autoridades de Ocupação, sempre o autor que o sinistro ditador das “Falésias” representasse Adolfo Hitler. E contudo no “Diário”, de passagem, há uma referência clara ao desacordo entre Polis e Ethos. Mas, como também escreveu, a propósito das acusações de não apurar suficientemente as responsabilidades de guerra, ama a sua pátria.

Logo proibido na Alemanha, quando do seu aparecimento, embora a suspensão mais tarde fosse levantada, tendo sido até traduzido na França ocupada de 1942, o livro tornaria Jünger suspeito.

De resto, o tema das “Falésias” – a “destruição do mundo tradicional e cavalheiresco”, o fim das “guerras leais em que combatiam cavaleiros” – é o mesmo das “Abelhas de Cristal” e de “Heliopolis”. Na linha dos velhos mitos germânicos, os heróis, “após terem lutado em vão contra as hordas de novos bárbaros, retiram-se para mundos misteriosos e distantes, colocando no rosto máscaras de ouro”, símbolos da morte e da entrada num ciclo de redenção.

Jünger, sem conspirar propriamente, pertencia aos círculos de certa oposição interna – o grupo do general comandante da região militar de Paris, von Stuelpnagel, junto de quem servia. E, se na sua ligação aos que em 20 de Julho de 44, tentaram eliminar o Führer, não o levou ao Tribunal do Povo, onde os processos, expeditivos e simples, de Freisler, não deixariam, certamente de o incriminar, tal deve-se, não tenho dúvida, a uma profunda e misteriosa solidariedade. Hitler, o antigo combatente das primeiras linhas, conservava um respeito indelével pelo antigo tenente de “destacamentos especiais”, Ernst Jünger, ferido catorze vezes e titular, desde os 23 anos, da mais alta condecoração militar alemão do tempo, o “Pour le Mérite”, e poeta luminoso do heroísmo.

Esta fidelidade teria levado certa vez o chefe supremo da Alemanha a avisar os homens das “guerras” dos microfones e dos títulos de caixa alta: “Deixem o Jünger em paz.”

Foi em Paris, no próprio Hotel Majestic, centro nevrálgico, que Jünger escreveu o ensaio “Der Friede” (“A Paz”), concebido em fins de 1941 e finalmente redigido em 1943. Além de terrível libelo contra Thanatos, as potências de morte e destruição, constituía um apelo à juventude da Europa, para uma paz com honra, superando fronteiras, e destinava-se a servir de manifesto aos conspiradores, reunidos sob o prestígio e “sólidos ombros” do marechal Rommel.

Sobre esta perspectiva política e acerca da sua actualidade, disse-me Jünger, que recordou um encontro, durante a Ocupação, no Instituto Alemão de Paris, com Drieu La Rochelle, por quem ficara com simpatia, e que se referira, na altura, a uma torre gótica de igreja medieval, numa aldeia situada na frente, num sector em que ambos tinham estado, na guerra de 14-18, e que dava as horas para os combatentes de ambos os lados:

“A Europa tem história em demasia. Tocqueville previu que a América e a Rússia seriam as potências do futuro. A realidades históricas são muito fortes. É difícil suprimir os nacionalismos.

O Estados nacionais nasceram com a Revolução. A distinção entre Heimat (Província) e Vaterland (Pátria) pode revelar-se válida para uma nova Europa. Pela minha parte desejaria vê-la realizada, mas receio que as pessoas estejam excessivamente empenhadas nas querelas nacionais.

Napoleão, como corso que era, quis fazer dos irmãos reis... Nietzsche considerava que, por isso, ele tinha perdido a sua oportunidade, o que não teria sucedido com Carlos Magno.”

As Drogas como Chave

Em 1970, Jünger publicou “Annaeherungen – Drogen und Rausch” (“Aproximações – Drogas e Embriaguês”) – de que gentilmente me ofereceu um exemplar da tradução francesa, saída meses antes – dedicado ao mundo das drogas, que experimenta pessoalmente, numa atitude de requintado epicurismo e na linha da tradição oriental da aventura interior, orientada pela subtileza da sabedoria e pelo culto da virtude.

A este respeito escreve: “...deveria existir uma certa idade (...), a partir da qual todas as restrições desaparecessem – porque quem se aproxima do ilimitado tem direito a que lhe concedam vastos limites”.

E “Os porcos de Epicuro”, como se dizia antigamente, não se arriscam a irromper nas plantações de papoila e de cânhamo. O epicurista não é inclinado ao excesso, que poria o seu prazer em perigo.

Desfruta do tempo e das coisas, sendo assim o oposto do toxicómano, que padece sob o peso do tempo.

E ainda: “As drogas serviam-lhe de chave para se introduzir nos esconderijos e nos antros do mundo.

Também bebia vinho, mas nunca por gosto do prazer, antes por uma mistura de sede de aventuras e sede de conhecer (...).
O vinho era para ele, uma chave entre tantas outras, um dos pórticos do Labirinto.

(...) Pensava que cada droga contém uma fórmula que dá acesso a certas câmaras e a certos enigmas do mundo”.

Acerca deste aspecto da sua experiência, disse-me Jünger: “O importante não é a droga, mas os graus de aproximação.
 Já Hoffmann, por exemplo, faz diversas alusões ao ópio.”

Sobre a sua obra “Besuch auf Godenholm” (“Visita a Godenholm”), em que explora as possibilidades abertas pela acção da droga, no que toca a agudeza do espírito e largueza de visão, refere o autor uma circunstância significativa:
 Gottfried Benn, o grande poeta alemão, médico durante as duas guerras e que assistiu, nessa qualidade, à execução em Bruxelas de Edith Cavell em 1915, por espionagem, num encontro em Berlim, pouco antes da sua morte, dissera-lhe que a “Visita” era o que tinha escrito de mais requintado.

E Vintila Horia, o conhecido romancista e historiador de literatura, em carta dirigida a Jünger, considera acerca do livro: “O próprio título significa, talvez, a casa dos deuses ou o tecto dos deuses, se não me engano e trata-se da última iniciação – a da morte – esboçada e pressentida, desde a primeira página.”
A inspiração do autor, de profundo sentido metafísico, parece assim, nesta última fase, libertar-se cada vez mais das contingências e atingir uma excepcional pureza.

Passeio em Lisboa

Num volume que reúne curtos ensaios, publicado em francês nos fins do ano passado, com o nome “O Contemplador Solitário”, figuram algumas breves notas sobre Lisboa, sob o título “Balkon zum Atlantik” (“Varanda sobre o Atlântico”), onde esteve em 1966 e que evidentemente se revestem para nós de particular importância.

Sobre a Praça do Comércio – um dos grandes “foyers” do “teatro europeu” e de que gaba a consonância do verde mate com o cinzento das águas do Tejo – invadida pelos automóveis, alude aos Descobrimentos e ao carácter secundário do Mediterrâneo, com a sua navegação sem riscos, e sublinha que mesmo Colombo, o grande genovês, só pôde fazer-se à vela de um porto atlântico.

Acerca do Museu de Arte Antiga, que descobriu ao sabor de um passeio, depois de notar a inexistência de uma escola nacional (facto que o leva a supor, juntamente com o número “surpreendente” de obras anónimas, não ter tido a pintura, por aqui, muita estima...), qualifica Nuno Gonçalves de “fisionomista de primeira grandeza, a que poderia chamar o Duerer português”, com o mérito de uma originalidade própria, visto pertencer à geração anterior.

E de “A Tentação de Santo Antão”, também exposto nas Janelas Verdes e que muito admirou, refere a actualidade de Bosch, com o seu saber oculto.

Estrangeiro na própria Pátria

Ernst Jünger é um dos maiores prosadores de sempre da língua alemã. O seu estilo é objectivo e sóbrio, seco mas apolíneo. Um estilo de precisão técnica, de clássica elegância e de fino recorte, banhado por uma atmosfera de “mozartiana” limpidez, por vezes de trágica transparência. O que não impede muitas páginas de culminarem em aforismos brilhantes, lembrando os melhores de Lichtemberg e Nietzsche.

Entronca numa grande tradição cultural, sendo visível, na sua mentalidade e na sua obra, uma muito profunda afinidade com Goethe e os românticos alemães.

Mas – e isto interessa sobretudo àqueles que tanto se preocupam em definir ideologias ou em tudo catalogar com palavras sonoras, pensando talvez que o que é grande precisa adjectivação – torna-se extremamente difícil, quanto a Jünger, apurar, não a ideologia, terreno que lhe é manifestamente estranho, mas as suas concepções e personalidade.

Combinação que parecerá incoerente, a qualquer racionalista, de nacionalismo e universalismo, heroísmo e tecnocracia, violência física e nobreza de alma, aristocratismo e neobarbarismo.
Todos estes elementos apenas mantidos em equilíbrio, aparentemente precário, pela sua personalidade, dir-se-ia pela alquimia misteriosa da sua simples existência. Neste sentido, mas apenas neste, o escritor, de cuja obra, aliás, Heidegger era um dos melhores intérpretes, será existencialista.

E se parecesse incontroverso que um homem como Jünger, de individualismo extremado, não pode aderir a grupos e muito menos a qualquer movimento de massas, não é menos incontestável uma profunda transcendental ligação à sua comunidade, à sua terra e ao seu sangue.

Mesmo na “Paz” e apesar dos seus objectivos supra-estaduais, escreve: “Da mesma forma que a lealdade do homem, no novo Estado, não pode assentar no internacionalismo, mas sim na sua fidelidade nacional, a educação de fundar-se na fé e não na indiferença. Ele deve ser o homem de uma pátria, no espaço e no infinito, no tempo e no eterno.”
Admirador de Heidegger, nunca foi realmente existencialista. Pensador pré-nazi do nazismo, nunca foi nazi. Defendendo a paz universal, não é pacifista. Antitotalitário, escapa às classificações de democrata, ou mesmo de liberal.

Mas talvez uma das melhores chaves para o conhecimento da sua personalidade esteja no curto texto que escreveu por ocasião dos seus 80 anos “Beim Achtzigsten Jahr” (“Aos Oitenta Anos”), que constitui o fecho do “Contemplador”:

“Tive sempre o sentimento de não estar conforme com a ordem estabelecida – Quer seja politicamente definida pela monarquia, pelas repúblicas ou pela ditadura, quer sirva economicamente de pasto ao “homo faber” e aos seus satélites, quer esteja teologicamente desmitizada pelas raposas da inteligência.

Por isso precisei de nadar contra uma corrente cada vez mais forte (…) em plena “terra de ninguém” (…) muitas vezes com a pergunta de Molière, sete vezes repetida: “Que diabo estou eu a fazer nesta galera?”

De ano para ano tenho suportado, também, o sofrimento que Hölderlin atribui a Hyperionte: o sentimento de ser estrangeiro na própria pátria.”

E, logo a seguir, em contraponto inevitável e pessoalíssimo, acrescenta: “É o que atestam, no meu espírito e no meu corpo, os estigmas e as cicatrizes de um amor desgraçado, mas indelével, que se prende ao povo, não a partidos.”
Ernst Jünger, síntese elaborada de homem de acção e de pensamento, germânico do nosso século e do fundo das eras, traço de união entre o Ocidente e o Oriente, é mais um “sage” do que um guia. E quando se despediu de mim com formal reserva, continuando delicadamente à porta de casa, ao lado da mulher, até o carro se afastar, tive a noção que aquele homem só, figura isolada, não deixaria discípulos.
Mas a sua lição é talvez bem mais fecunda e excepcional.

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